Search here...
TOP
Ficção Científica Prévias

Miragem: leia os primeiros capítulos!

Você já conhece esse best-seller internacional?

Se você ainda não conhece essa história, leia a sinopse completa:

Em um sistema solar dominado pelo brutal Império Vathekês, Amani é uma sonhadora. Quando uma mudança finalmente ocorre em sua vida, não é exatamente da maneira como ela esperava: a garota é sequestrada pelo Império e levada em segredo para o palácio real, onde descobre que é idêntica a Maram, a cruel princesa de Vathek.

Maram é tão odiada por seus colonos que ela precisa de uma substituta, alguém que tome o seu lugar em aparições públicas… e que possa morrer por ela.

Mesmo forçada a desempenhar um papel, Amani não consegue ignorar a beleza do palácio—ou a presença de Idris, o noivo da princesa. Só que o esplendor da corte esconde um mundo de violência e medo.

Para ter a chance de ver a sua família de novo, Amani precisa interpretar a princesa com perfeição, já que um único passo em falso pode guiá-la para a morte.

“Miragem”, escrito pela americana Somaiya Daud e traduzido por Mariana C. Dias, tem 352 páginas, acabamento em capa dura e está em pré-venda! Compre em até 10x sem juros e com frete grátis para todo o Brasil clicando aqui.

Agora leia uma prévia exclusiva desse lançamento tão aguardado:

PRÓLOGO

Ele é o único da família sem a daan. Dizem que isso faz dele ideal; não tem nenhuma marca tradicional no rosto para que seja identificado caso morra. Nenhuma maneira de ser associado aos familiares. Jovem, não tem nem quinze anos ainda. Novo demais para a cerimônia da daan. É o que ela diz quando finalmente o escolhe: que ele é jovem, habilidoso e equilibrado. Isso, diz ela, é tudo o que importa.

Contudo ele não se sente jovem. Sente-se faminto. Uma fome que o consome dia e noite e que acaba se tornando uma companheira sem a qual ele não consegue viver. Ele sabe com o que está lidando. Sabe como levar uma surra e como cair do jeito certo quando um vigia o acerta com um cassetete. Ele sente raiva. Muita raiva. Uma raiva que não precisa de combustível.

Ele se sente invisível em um mar de rostos invisíveis.

A multidão está silenciosa, como o esperado nesses eventos. Multidões solenes. Solenes demais. Os nobres estão acomodados em assentos de veludo atrás de cordas douradas. E os que estão em pé olhando para cima em direção ao palanque, esperando que ela apareça, são os pobres. Os famintos. Os fracos. Estão aqui porque são obrigados a estarem aqui.

As risadinhas da makhzen soam como pássaros preciosos. Roupas brilham sob a luz do sol e bainhas reluzem enquanto homens se agitam na atmosfera desconfortável do verão. É de se admirar que alguns deles sejam andalões; todos parecem vathekeses agora. Aceitaram o governo vathekês. Não estariam vestidos assim se ainda fossem andalões.

Ele se lembra da irmã mais nova enquanto caminha pela multidão. Morta há dois verões com o estômago inchado pela fome. O pai há muito os abandonou — fraco demais para cuidar deles, para continuar ali.

Uma das irmãs sobreviveu. Além dela, um irmão e a mãe. Todos seriam bem cuidados depois disso, ela jurara. Um marido para Dunya. Uma casinha no campo para todos eles, com acesso a grãos e a um jardim e, talvez, até a um rebanho. Longe de tudo que conheciam, mas uma chance para uma vida nova.

As mãos dele suavam. Ele havia treinado para isso. Estava pronto. No entanto, nunca havia tirado uma vida.

O sangue nunca morre, lembrou-se. O sangue nunca esquece.

Seria para um propósito maior; mais importante do que sua vida, mais importante do que qualquer outra vida. Isso precisa ser feito, pensou ele. Em nome de Andala. Em nome da liberdade.

Ele se assombra enquanto ela sobe os degraus que levam ao palanque. Como alguém que se parece tanto com seus próprios amigos e familiares é capaz de lhe causar tanto terror? Ele ouviu histórias. Sabia que essas coisas acabavam distorcidas pelo disse me disse. Mas a vida dele, de seus irmãos e vizinhos, eram todas testemunhas de alguma verdade. A ocupação era cruel. E seus herdeiros, ainda piores.

O sol resplandece contra o metal prateado de uma arma. Ele a ergue, mira e atira.

Duas vezes.

GALÁXIA MIZAAL, SISTEMA OUAMALICH

CADIZ, UMA LUA DE ANDALA

1

Em uma pequena lua que orbita um grande planeta, havia uma pequena fazenda dentro de uma pequena aldeia. Lá, havia uma caixa e, nessa caixa, uma pena.

A caixa era velha, feita de madeira, gasta e sem qualquer sinal de entalhe ou pintura. Cheirava a açafrão e canela, forte e doce. Junto com a pena, havia um anel de sinete, uma flor vermelha conservada em resina e uma tira de veludo verde desfiada nas bordas.

Eu costumava entrar de fininho no quarto dos meus pais quando era pequena, sempre para bisbilhotar a caixa. E seu misticismo apenas cresceu frente aos meus olhos quando minha mãe passou a escondê-la de mim. A pena me fascinava. Uma criança de cinco anos não via qualquer utilidade em um anel, flor ou tecido. Mas a pena de um pássaro mágico e extinto? Como todas as coisas da velha ordem, ela me encantava.

A pena era preta e composta de centenas de tons escuros e brilhantes. Quando a segurava contra a luz, ela reverberava em tons azuis e verdes e vermelhos, como magia reagindo a uma mão invisível que agitava uma superfície. Pertenceu a um teslite, disse minha mãe, pássaros que eram considerados mensageiros de Dihya.

Quando Dihya desejava enviar um sinal a você, Ele colocava uma pena em sua mão. Quando Ele queria que você atendesse a um chamado e agisse, enviaria o próprio pássaro. Era um chamado sagrado e importante que não deveria ser menosprezado. Guerra, peregrinação, o destino das nações: era para isso que o teslite chamava uma pessoa.

Meu avô recebeu um teslite uma vez, embora minha mãe nunca ter dito o porquê ou mesmo quem ele foi.

— Um homem imprudente que morreu se ressentindo de tudo o que não conquistou — ela me disse uma vez.

Meu olhar se fixou no interior da caixa. Não enxergava nada além da pena. O sol se poria em breve, e eu não tinha tempo para perder encarando uma pena velha. Mas ela me chamou como quando eu era uma garotinha, e, sem pensar, acariciei a curvatura dela com o dedão, de cima a baixo.

Não havia nenhum teslite sobrevivente em Cadiz ou em nosso planeta natal, Andala. Como muitas coisas da infância de minha mãe que tinham sido esquecidas, gastas ou extintas, tudo o que sobrou eram relíquias. Vestígios do que uma vez existiu e provavelmente nunca mais voltaria a existir.

Assustei-me quando minha mãe pigarreou à porta aberta.

— Amani — disse ela, simplesmente, com uma sobrancelha erguida.

Era tarde demais para esconder a caixa, e não consegui disfarçar o sentimento de culpa por bisbilhotar o quarto dos meus pais apenas para ver o objeto novamente.

Contudo minha mãe não disse nada, apenas sorriu e se aproximou, com uma mão estendida.

— O… o seu pai lhe deu a pena? — perguntei por fim e entreguei a caixa a ela.

Seus olhos se arregalaram um tantinho. Por um momento, pensei que ela não fosse responder.

— Não — disse ela, suavemente, fechando a tampa da caixa. — Eu a encontrei logo depois de o pássaro partir. Num momento de fraqueza num matagal.

Raramente minha mãe ficava assim; pensativa e melancólica, como se estivesse se lembrando de um passado mais generoso. Ela sobreviveu a duas guerras: uma civil e, depois, a invasão vathekesa seguida pela ocupação. Ela era forte, com uma coragem imensurável, inflexível, invencível e inquebrável.

— Qual foi seu momento de fraqueza? — perguntei. Eu não receberia uma resposta. Nunca recebia.

No entanto, minha mãe me surpreendeu e sorriu.

— Estava fugindo do amor — disse ela. — Do seu pai, para ser específica. Encontrei em meu coração a mesma capacidade que o seu avô tinha de se perder em outra pessoa, e isso me deixou apavorada.

Meu queixo caiu, e ela se divertiu com isso. Eu sabia que meus pais se amavam; era óbvio para qualquer um que olhasse para eles, apesar de suas diferenças. Mas nunca ouvira minha mãe dizer algo assim, e ouvi-la admitir isso por livre e espontânea vontade…

— Mas o que você está fazendo aqui? Deveria estar se arrumando para hoje à noite.

Eu não saberia me explicar, então apenas balancei a cabeça e dei de ombros.

— Não sei. É que… eu amo essa caixa. Acho que queria vê-la mais uma vez.

Ela se aproximou e inclinou meu queixo para cima. Eu estava crescida, mas minha mãe ainda era vários centímetros mais alta do que eu. O interior dos seus dedos acariciou minha bochecha, desenhando linhas sobre onde eu receberia minha daan — uma tatuagem distintamente geométrica que marcaria meu primeiro passo para a maioridade. Esperava que fosse como a dela: forte e poderosa, deixando o mundo todo saber quem ela era e de onde vinha em apenas uma olhada.

— Sei que essa semana tem sido difícil — disse ela, por fim. — Mais difícil do que a maioria. Mas isso vai passar, como tudo sempre passa.

Mantive a boca fechada em vez de dizer o que pensava. Nós não deveríamos apenas esperar que nossos problemas passassem. Na verdade, eles nunca deveriam nem ter acontecido. Sofremos não apenas com a queimada de nossos campos naquela semana, mas com a presença crescente dos vathekeses.

Porém minha mãe me espantou e me fez ficar em silêncio uma segunda vez ao entregar a caixa para mim.

— Acho que isso deveria ser seu agora — disse ela, com a voz suave, mais uma vez. — Esperança combina mais com uma menina mais nova. Vai encontrar mais conforto nisso do que eu.

Abri e fechei a boca, sem palavras e surpresa.

— Sério? — perguntei, finalmente.

Ela sorriu de novo.

— Sério — repetiu ela, beijando minha testa. — Talvez Dihya lhe entregue uma segunda pena, e você pode acabar recebendo o seu próprio sinal nesses tempos difíceis.

Ela me deixou sozinha no quarto com a caixa ainda apertada contra meu peito. Depois de alguns segundos, levei o objeto para o meu quarto, temendo que minha mãe pudesse subir as escadas novamente e mudar de ideia.

O sol estava realmente se pondo naquele momento. Apressei-me para guardar a caixa e pegar minhas coisas. Khadija estaria esperando, e odiaria ouvi-la reclamar por eu ter chegado atrasada. Do lado de fora, a aldeia estava quieta. Normalmente, nessas horas, eu seria capaz de ouvir o cantarolar silencioso dos trabalhadores do campo voltando para a aldeia e o tilintar do sino que marcava o fim do dia. O arrastar das botas, os gritos dos comerciantes vendendo mercadorias na praça e cachorros e cabras berrando; nenhum desses sons estava presente.

Não sobrou nenhuma plantação. Não depois do fogo que a Guarda Imperial ateou na semana passada. Rebeldes — ou, mais provavelmente, ladrões famintos — abrigaram-se numa das guaritas. Em vez de procurar em cada uma delas, a Guarda ateou fogo nas plantações. Ouvimos os rebeldes gritarem tão longe quanto na praça da aldeia. Com as plantações destruídas, contávamos as semanas que faltavam para o inverno e para a fome que, com certeza, viria.

Por que eu iria querer a minha própria pena, o meu próprio sinal? Um momento como aquele, uma vida como aquela, não precisava de nenhum sinal. Eu queria outra coisa. Algo mais tangível e imediato. Eu queria o mundo.

Os vathekeses não eram colonos de nossa nébula — eles costumavam viver no planeta deles, Vaxor, em geral pacíficos e respeitando as leis galácticas. Mas eles envenenaram a própria atmosfera e foram forçados a mudar para uma lua que os orbitava. Uma medida paliativa para uma população em crescimento e com falta de recursos. Alguns disseram que era inevitável que eles decidissem se espalhar por outros sistemas.

Havia momentos em que eu vislumbrava o mundo antes da ocupação dos vathekeses. Quando minha mãe ou meu pai falavam sem pensar, ou uma senhora querida por todos na aldeia dizia “na minha época”, ou quando um homem cantava uma velha canção que eu nunca tinha ouvido. Os restos de nossos velhos costumes estavam ali. Quase impossíveis de serem localizados, mas eu os queria de volta. Queria que todos se lembrassem do que fomos, do quão forte conseguíamos ser. Obstinação era resistência, com certeza. Mas até mesmo uma rocha se reduziria a nada se enfrentasse chuva suficiente.

Eu poderia desejar isso até o dia da minha morte e em nada adiantaria. Desejos nunca resolviam nada.

Guardei a caixa e suspirei. Peguei meu casaco e meus sapatos e desci para o andar de baixo.

***

Na cozinha, embalei o resto da comida que levaríamos conosco. Celebraríamos minha noite de maioridade. Eu e outras doze garotas finalmente amadurecemos e, como de costume, toda a aldeia viajaria a uma das casbás abandonadas. Lá, receberíamos nossa daan e nos tornaríamos adultas aos olhos da aldeia. Depois, haveria um jantar e dançaríamos para celebrar.

— Amani.

Eu me virei e encontrei Husnain, meu irmão, parado na porta. Meus pais tinham três filhos: Aziz, o mais velho, nasceu mais de dez anos antes de mim. Eu, a mais nova, e Husnain, quinze meses mais velho do que eu. Até posso ter usufruído da sabedoria de Aziz, mas Husnain era a minha outra metade, meu gêmeo apesar dos meses entre nós. Ele tinha toda a imprudência e o entusiasmo de um segundo filho. Raramente contido, exceto ao meu lado.

— Trouxe uma coisa para você — ele disse quando me sentei.

Sorri e estendi as mãos.

— Pode passar para cá.

— Feche os olhos.

Fechei e mantive minhas mãos estendidas. Segundos depois, um objeto largo e fino foi colocado em minhas mãos. Bisbilhotei antes de o meu irmão dizer que eu poderia abrir os olhos, e quase derrubei o maço de papel como se ele estivesse pegando fogo.

— Amani!

— Isso é…?

Quase um mês antes, fomos a Cadiza Prime, capital de nossa lua, buscar suprimentos para a pequena plantação que meus irmãos e meu pai mantinham em nosso pedacinho de terra. Perambulei pelo mercado a céu aberto e, esquecido atrás de uma banquinha de livros, havia um maço de papel envelhecido: poesia massinita. Cara demais para eu sequer considerar comprar. Além disso, a maioria das poesias religiosas era proibida por lei. Elas foram usadas diversas vezes como inspiração para os rebeldes durante a ocupação.

Massinia era a profetisa de nossa religião. Todos a amávamos, mas eu a amava mais do que qualquer outra coisa em nossa crença. Tínhamos músicas em seu nome, além de toda uma tradição de poesias criadas para venerar sua vida e suas conquistas. Eu amava essas poesias acima de todas as outras e as desejava, apesar do risco de ser pega com elas. Minhas mãos tremeram quando me aproximei daquela coleção.

— Você se arriscou demais…

— Não se preocupe com isso — disse ele. — Pertencem a você agora, e mais nada importa.

Eu estava com medo de sorrir e de tocar nelas. Minhas! Mal podia acreditar. Nunca tive uma coleção de poesias antes.

— Ah, pelo amor de Dihya — Husnain riu. Ele soltou o barbante ao redor delas, antes de colocá-las novamente em minhas mãos. Eu teria que transcrevê-las para um material mais resistente ou salvá-las numa base de dados ou qualquer coisa assim. Não havia como saber se aguentariam o clima daqui ou se eu as perderia ou o que poderia acontecer. E eu precisaria escondê-las ou arriscaria serem confiscadas pelos magistrados.

Nossas almas voltarão para casa, nós voltaremos, lia-se no primeiro poema. Daremos o primeiro passo na ascensão da cidadela.

Fechei os olhos e vi a cidadela imaginada —, atualmente, sem dúvidas, transformada em poeira. Eu conseguia imaginar a dor do autor. Podia senti-la como uma ferida em meu coração enquanto minha alma olhava por cima dos ombros e seguia caminhando, deixando algo precioso para trás. Sabia como era trazer à tona uma memória que rapidamente se desvaneceria em minha mente, sumindo um pouco mais a cada vez que fosse lembrada até que não passasse de um sentimento. De uma ruga que você conseguiria sentir, mas não se lembrar de onde veio. A dor naquela página era palpável — todos tinham uma cidadela. A cidade onde nasceram, transformada em escombros. Uma família morta há muito tempo, enterrada numa sepultura sem identificação. Tudo inalcançável, exceto através da morte.

E isso, poesias como essa, era tudo o que tínhamos para preservar nossos contos, nossa música e nossa história.

— Obrigada — respondi e joguei meus braços ao redor dele. — Você não tem ideia…

— Tenho um pouquinho — ele riu, beijando minha testa. — Você é minha pessoa preferida no mundo todo, Amani. Fico feliz em lhe dar isso. Dihya, você está chorando?

— Não! — Mas eu sentia o nó em minha garganta, pronto para se dissolver em lágrimas a qualquer minuto. Eu estive tão amedrontada, tão nervosa com aquela noite. E, no fim, era uma noite de alegria. Eu entraria na vida adulta não apenas com minha família e amigos, mas com um tesouro que me confortaria nas noites difíceis demais para que fossem compreendidas.

— Talvez agora você possa escrever suas próprias poesias — disse ele, de forma mais suave.

Bufei uma risada. Com certeza, eu era uma poetisa fraca. E em um mundo onde não compensava escrevê-las, eu não tinha qualquer chance de melhorar.

— Você tem talento — ele insistiu. — Deveria escrever mais.

Faminta por elogios, corei. Husnain era a única pessoa que já leu minha poesia, mas eu tinha certeza de que ele falava aquilo por causa da lealdade que existia entre nós e não por qualquer conhecimento técnico que o qualificaria para comparar a minha poesia com a de poetas de verdade.

— Quem sabe num outro mundo — comentei, apertando a poesia contra o peito.

Nossas almas voltarão para casa, nós voltaremos.

Olhei para cima e sorri para meu irmão, a outra metade do meu coração.

— Mas não neste. Neste mundo, esses poemas são suficientes.

2

A maior parte de nossa aldeia começou a caminhar pela estrada antes do pôr do sol, mas Aziz, Husnain e eu partimos mais tarde com algumas outras poucas famílias. Enfiei o presente de Husnain no meu bolso, pois me sentia relutante em me separar de um tesouro como aquele tão cedo.

— Amani, não estrague o pergaminho antes mesmo de poder lê-lo — murmurou Husnain, baixinho o suficiente para Aziz não ouvir.

Olhei de relance para o nosso irmão mais velho. Ele nasceu antes da ocupação. De nós três, Aziz era o único que lembrava da nossa vida antiga, que conheceu nossos pais antes da escuridão. Os anos sob a ocupação criaram uma casca grossa em nosso irmão. Ele era sábio, talvez sábio demais para a sua idade, e confiável. Enquanto Husnain agia sem pensar, Aziz observava, esperando que, vencido pelo cansaço, todo o mundo revelasse seus segredos a ele. Inclusive seus irmãos mais novos e indisciplinados.

 — Não vou estragar — prometi a Husnain, lutando para não sorrir tanto.

— Eu deveria ter esperado mais tempo para te dar isso — disse ele, mas seu sorriso se igualou ao meu.

O lado de fora estava estranhamente silencioso, exceto pelo som das sondas vathekesas zumbindo acima, com seus feixes de luz branca escaneando o chão. Na esquerda, havia um pomar, que foi reduzido a terra queimada. O ar acima parecia manchado de vermelho pelos gases dos extintores que os vathekeses lançaram sobre o lugar no auge do incêndio.

Algumas semanas antes, existiam três campos lado a lado — romãs e azeitonas a oeste e um campo de rosas que cultivávamos para vender e fazer perfumes no leste. Agora, os pomares ao oeste pareciam um cemitério, com centenas de ramos esguios e cinzentos se esticando em direção ao céu vermelho. Os arbustos de rosas e as treliças desapareceram, vaporizados no fulgor do incêndio. Fumaça e gás vermelho dos extintores ainda subiam ao céu. Nada mais cresceria ali, não nos próximos anos. Obriguei-me a desviar o olhar. Eu não ganharia nada me preocupando com o ataque, não ganharia nada me perguntando como nos alimentaríamos no próximo inverno ou com o que trabalharíamos na primavera.

O fogo foi provocado, eles alegaram, por “rebeldes” da região. No entanto, a única prova que a Guarda tinha de rebeldes se abrigando entre nós era uma frase que disseram ter sido entalhada nos portões:

O sangue nunca morre. O sangue nunca esquece.

Era uma frase do Livro de Dihya. A maioria das pessoas acreditava que era um testamento para nossa perseverança e sobrevivência. Mas outros acreditavam que isso significava que Massinia poderia voltar, que o sangue dela os chamaria de volta ao mundo de uma forma ou outra. Qualquer que fosse o significado escolhido por você, os rebeldes estavam usando como um grito de guerra, agora mais do que nunca.

Os barracos e casas, junto com as portas de entrada aos arredores da aldeia, viraram escombros. As pessoas que moravam ali, aquelas que sobreviveram, amontoavam-se ao redor de uma fogueira. Senti uma pontada de culpa ao olhar para eles; minha família não tinha muito, mas nossa casa ainda estava intacta, e não enfrentaríamos a fome como eles.

Abri minha bolsa e minha mão alcançou o pão que eu havia feito naquela manhã para as celebrações da noite de maioridade. Minha mãe e eu passamos horas na fornalha da aldeia, junto com todas as outras garotas que celebrariam sua maioridade, preparando pão suficiente para todos os aldeões. Tínhamos tanto… eu poderia doar alguns pães.

Aziz colocou uma mão no meu ombro e balançou a cabeça, como se soubesse o que eu planejava.

— Eles estão sendo observados — disse ele com a voz baixa. — A Guarda acredita que há rebeldes escondidos entre eles.

Engoli minha raiva e desviei o olhar.

— É difícil — disse ele, apertando meu ombro. — Mas pense em nossos pais, Amani. O que eles fariam se você fosse levada por doar pão aos rebeldes?

Olhei para o chão. Eu sabia que ele estava certo. Ele, mais do que eu, sabia o preço de ser confundido com um rebelde. Por fim, tirei a mão da bolsa e permiti que ele me levasse, deixando os campos e os refugiados para trás.

***

Finalmente, chegamos na velha casbá muito além dos limites da aldeia. A casbá era uma construção antiga; agora, uma mansão decrépita entre muitas casas decadentes, com palmeiras e figueiras enormes. No passado, poderia ter pertencido a uma família rica, mas se tornou o refúgio de agricultores e aldeões em noites como aquela. Luzes atravessavam as janelas quebradas, e uma música ao longe ressoava no ar, misturando-se ao som do vento e da vida selvagem. Suspenso acima da casbá, no céu noturno, estava nosso planeta natal, Andala, pendurado como uma laranja madura demais. Com uma visão como aquela era fácil se esquecer de tudo: nossa pobreza, o governo vathekês, o fantasma da perda que acompanhava nossos pais todos os dias.

Chegamos com tempo suficiente para organizar o átrio e para nos arrumarmos. Todas as garotas que alcançariam a maioridade naquele dia tinham quartos privativos na casbá para se prepararem antes das festividades. O burburinho entre amigas crescia e morria enquanto minha mãe me ajudava a vestir o cafetã e as joias.

Senti um calafrio quando me vi no espelho. Minha mãe e eu éramos assustadoramente parecidas. Ela era mais alta, mas tínhamos a mesma pele marrom, as mesmas maçãs do rosto protuberantes e queixos igualmente pontudos. O cabelo dela era grosso e ondulado, e parecia florescer de um ponto alto demais em sua testa, como o meu.

Contudo era aí que as similaridades terminavam. Minha mãe sobrevivera a horrores demais para contar nos dedos e nunca falava deles. Mas sua força era óbvia para qualquer um que se importasse em observar. Ela era inabalável, e eu… eu não era como minha mãe. Gostava de pensar que era corajosa e cheia de convicção, mas a vida não havia me testado como a testou. Não sofri nada do que ela sofreu, e pensar nisso me fazia estremecer por dentro. Como eu poderia enfrentar a vida adulta, como eu poderia esperar ser uma mulher, quando não conseguia nem mesmo me fazer imaginar as provações da minha mãe? Como eu enfrentaria as minhas?

— Tornar-se adulta é assustador — minha mãe disse, como se tivesse lido minha mente. — Ter esse medo é inteligente da sua parte. Significa que você vai enfrentar tudo com cuidado e, espero, com sabedoria.

Ela insistiu que eu me sentasse em frente ao espelho e começou a me preparar. Não havia uma abundância de joias para enfeitar o meu cabelo, não tínhamos dinheiro para isso. Mas, antes da ocupação, tanto a família do meu pai quanto a da minha mãe trabalhava com botânica e minha mãe conseguira guardar algumas das suas joias. E as joias das irmãs delas, passadas para minha mãe depois de todas terem sido mortas.

Isso era tudo o que eu tinha de nosso passado: as joias da minha mãe e as tradições, como a daquela noite. E logo, eu teria minha daan, uma herança pequena, mas poderosa.

Havia um diadema com correntes que eu amava desde criança, velho e feito de pecinhas de ferro no formato de portas, cada uma pendurada com pedras vermelho-escuras. O cafetã da noite de maioridade era da minha mãe, branco com bordados vermelhos ao longo de todo o corpete e que desciam pelo centro.

Pelo espelho, minha mãe sorriu novamente para mim enquanto prendia um brinco cravejado com pedras vermelhas na minha orelha.

— Pronto — disse ela, e segurou meu queixo para inclinar um tantinho a minha cabeça. — Você parece uma rainha.

***

O átrio onde as festividades aconteceriam estava repleto de luzes. Era uma velha construção na periferia da capital da lua. Fiquei animada com a música. As tamareiras foram envoltas em luzes douradas, que refletiam nas joias de ouro e nos bordados dos cafetãs, além de incidirem nos bules de metal e nos copos de vidro. Havia mesas baixas e almofadas espalhadas pela extensão do átrio, e toda a aldeia compareceu à celebração noturna. Na extremidade norte, havia um pequeno palco onde uma banda se apresentava, com o vocalista cantando uma velha canção kushailana.

As árvores estavam cheias de luzes, e lanternas balançavam alegremente na fonte no meio do átrio. A água nela balbuciava, atrapalhando o murmurinho das muitas famílias celebrando no lugar apertado. Outras doze outras garotas e suas mães se pressionaram na entrada ao meu lado, esperando. Olhos se voltaram para nós até quase todo o salão nos encarar. Husnain encontrou meu olhar e piscou para mim, e meu nervosismo espaireceu um pouco. Ao meu lado, minha mãe apertou a minha mão.

De repente, os tambores pararam e a conversa morreu. Por um longo minuto, não houve nada senão o som de água fluindo pela fonte. Alguém assoprou uma trombeta, uma nota sonora e grave, então os tambores voltaram a tocar.

Entramos, uma por uma, conforme nossos pais chamavam nossos nomes.

— Amani, filha de Moulouda e Tariq.

O propósito da noite de maioridade não era apenas celebrar. Nosso verdadeiro primeiro passo para a vida adulta seria receber nossa daan. As treze de nós nos sentamos em almofadas no meio do átrio e esperamos.

A tatuadora era uma senhora, sua daan esverdeou com o passar dos anos e se escondeu entre as rugas do rosto. Mas suas mãos eram firmes, e me mantive imóvel, apesar do ardor da agulha. Nos velhos tempos, eu teria sangrado e levaria semanas para as marcas cicatrizarem. Agora, eu precisaria apenas de algumas horas antes de se acomodarem permanentemente em meu rosto.

Uma coroa para Dihya e Massinia ganhou forma, com diamantes sobrepostos que se curvavam em minha testa. Linhas finas na minha bochecha esquerda para a minha ascendência — meu avô dissera ser descendente da própria Massinia, e apesar de nem eu nem minha mãe acreditarmos nele, as marcas dela cobriram minha bochecha esquerda. Na direita, estavam os desejos de meus pais para mim — felicidade, saúde, uma boa alma e uma vida longa. Não sei quanto tempo fiquei sentada enquanto a senhora trabalhou, mas, por fim, ela se afastou e sorriu.

— Baraka — murmurou ela. Bençãos.

E, simples assim, deixei minha infância e adentrei a vida adulta.

Minha mãe veio e se posicionou ao meu lado, o rosto austero como sempre, e apertou o meu ombro. Nossas daan eram parecidas, quase reflexos uma da outra e, naquele momento, esperei que pudesse fazer jus a elas, fazer jus a minha mãe. Coloquei uma das mãos sobre a dela e apertei. Com aquelas marcas, eu poderia enfrentar qualquer coisa no futuro. Esperava que elas me guiassem em direção à alegria e ao amor em vez de ao sofrimento.

Segui a fila das outras garotas e mães pelo átrio, abrindo caminho entre as famílias que observavam, riam e uivavam para nos parabenizar, até chegar ao banquete na extremidade norte. Nós, que estávamos sendo celebradas nesta noite, deveríamos nos sentar na frente da mesa do banquete, com as anciãs da aldeia e nossas mães. Meu coração se acalmou quando as ouvi conversar. Não havia lugar algum em nossa pequena lua como aqueles encontros. A maioria de nós éramos kushailanos, o povo mais antigo em Andala; minha família não era a única cujos ancestrais chegaram na terraformação de nossa lua. O ar ressoou com o som da nossa língua materna em vez do vathekês, e nossa música e nossos risos. Por um momento, pude imaginar que isso acontecia décadas antes da sombra dos vathekeses cair sobre nossa lua e conquistar nosso planeta e seu sistema.

Era difícil não se deixar levar pela alegria. Quando a cantora desceu e uma banda tomou o seu lugar, o ritmo da música acelerou. Eu amava as garotas ao meu lado — Khadija e Farah eram as minhas amigas mais próximas do mundo. Cresci com Khadija. Nossos pais tinham terras vizinhas, e nossas mães colhiam frutas nos pomares antes de qualquer uma de nós nascer, antes dos vathekeses obscurecerem os nossos céus. Demos nossos primeiros passos juntas, aprendemos a ler juntas e frequentamos a escola juntas. Quando chegou a hora de nos registrarmos no censo vathekês, fomos para a capital em Cadiz juntas.

Não demorou muito para que as duas pegassem minhas mãos e me levantassem. Então, dançamos, rimos e cantamos juntas.

Não sei por quanto tempo dançamos, mas outras amigas se juntaram a nós, entre risadas e conversas. O ar estava pesado com a fumaça dos incensos, com o aroma forte e adocicado de ameixas cozidas sobre o cordeiro. O mundo parecia brilhar e tremeluzir enquanto as luzes refletiam nas lantejoulas e joias falsas. Sei que todas parecíamos ser jovens demais para celebrar, como tínhamos sido apenas um ano antes. Mas eu ansiava para fazer parte do grupo, e agora era uma delas: feliz, gritando, caindo umas sobre as outras enquanto gargalhávamos.

Por um momento, esqueci de minhas preocupações. Rebeldes, fome, pobreza — nada disso importava.

Então, as portas da casbá foram abertas com tudo e a música parou.


MIRAGEM, escrito por Somaiya Daud e traduzido por Mariana C. Dias, foi lançado em 29 de janeiro de 2021. Compre no site da Literalize, com frete grátis e brindes exclusivos, clicando aqui.

Deixe uma resposta

%d blogueiros gostam disto: